O Sadismo do Cotidiano: O Prazer Oculto em Ver (ou Causar) Sofrimento.
A maioria das pessoas gosta de pensar que é, no fundo, boa. A simples palavra “sadismo” provoca rejeição — afinal, quem se sentiria confortável ao admitir que sente prazer ao ver alguém sofrer?
Mas os sinais estão por toda parte. No esporte, nos filmes, nos videogames, nas redes sociais… E o mais desconcertante: às vezes, esse prazer está também no nosso comportamento.
O que significa quando uma multidão vibra mais com uma briga entre jogadores de hóquei do que com um gol? Ou quando milhares de pessoas passam horas jogando videogames que recompensam a violência extrema? O que isso revela sobre nossa sociedade, nossa cultura e — principalmente — sobre nós mesmos?
A resposta pode ser difícil de aceitar: tendências sádicas não estão restritas a criminosos perigosos. Em determinadas condições, muitas pessoas revelam um gosto inesperado por crueldade e sofrimento alheio.
O Conceito de Sadismo Cotidiano na Psicologia
Tradicionalmente associado a distúrbios clínicos raros, o sadismo passou a ser estudado também em populações não clínicas com a noção de “sadismo cotidiano” (everyday sadism), introduzida por pesquisadores como Paulhus, Buckels e Jones (2013).
Segundo eles, pessoas com esse traço sentem prazer em prejudicar ou observar o sofrimento de outros, mesmo em situações banais do cotidiano — e sem qualquer diagnóstico psiquiátrico.
Referência: Buckels, E. E., Jones, D. N., & Paulhus, D. L. (2013). Behavioral confirmation of everyday sadism. Psychological Science, 24(11), 2201–2209.
O estudo mostrou que participantes que pontuavam alto em escalas de sadismo foram mais propensos a optar por tarefas dolorosas, como matar insetos, mesmo quando tinham outras opções neutras.
O Sadismo na Cultura e no Lazer
A atração pelo sofrimento alheio não está restrita ao campo psicológico — ela aparece com força na cultura de massa. Esportes violentos, filmes sádicos, reality shows baseados em humilhação pública e jogos eletrônicos com conteúdo extremo são exemplos claros.
Pesquisas indicam que o consumo frequente de mídia violenta pode estar associado a maiores níveis de dessensibilização emocional e até aumento da agressividade (Anderson et al., 2003).
Referência: Anderson, C. A., & Bushman, B. J. (2002). The effects of media violence on society. Science, 295(5564), 2377–2379.
Videogames como Grand Theft Auto e séries como Game of Thrones não apenas retratam violência, mas a transformam em objeto de prazer estético e entretenimento, o que levanta questões éticas e psicológicas sobre seus efeitos.
A Tétrade Sombria: O Sadismo como 4º Elemento do Lado Sombrio da Personalidade
O sadismo foi incorporado ao que se conhece na psicologia como a Tétrade Sombria da Personalidade, composta por:
Machiavelismo (manipulação fria e estratégica)
Narcisismo (vaidade e sede por admiração)
Psicopatia (impulsividade e ausência de empatia)
Sadismo (prazer ativo em causar dor)
Esses quatro traços compartilham um denominador comum: baixa empatia e disposição para explorar ou ferir os outros. A Tétrade foi proposta e consolidada por pesquisadores como Paulhus, Jones e Buckels.
Referência: Paulhus, D. L., & Williams, K. M. (2002). The Dark Triad of personality: Narcissism, Machiavellianism, and psychopathy. Journal of Research in Personality, 36(6), 556–563.
Referência complementar: Chabrol, H., Van Leeuwen, N., Rodgers, R., & Séjourné, N. (2009). Contributions of psychopathic, narcissistic, Machiavellian, and sadistic personality traits to juvenile delinquency. Personality and Individual Differences, 47(7), 734–739.
Sadismo nas Redes Sociais: Quando o Sofrimento Vira Conteúdo Viral
Na era digital, o sadismo ganhou novos meios de expressão — rápidos, anônimos e recompensadores. As redes sociais transformaram o sofrimento humano em conteúdo altamente compartilhável:
Brigas escolares, cenas de violência urbana e vídeos de “exposição” viralizam rapidamente.
Comentários ofensivos, discursos de ódio e cyberbullying muitas vezes recebem mais engajamento do que postagens neutras.
O algoritmo recompensa o que provoca reações intensas — mesmo que essas reações sejam raiva, escárnio ou humilhação.
Estudos sobre comportamento online, como os de Chester e DeWall (2017), demonstram que a dor social e a humilhação pública ativam os mesmos circuitos cerebrais da dor física — o que indica que o sofrimento alheio é algo real, mesmo quando ocorre digitalmente.
Referência: Chester, D. S., & DeWall, C. N. (2017). Combating the sting of rejection with the pleasure of revenge: A new look at how emotion shapes aggression. Journal of Personality and Social Psychology, 112(3), 413–430.
Quem São os Sádicos do Dia a Dia?
Pessoas com traços sádicos cotidianos nem sempre são violentas no sentido clássico. Elas podem:
Rir da dor ou do vexame alheio
Compartilhar conteúdos de humilhação
Sentir prazer com comentários ofensivos
Se envolver em situações de dominação simbólica (debates, humilhações públicas, bullying)
Esses comportamentos muitas vezes surgem em contextos com anonimato, validação social e ausência de consequências diretas — como é comum na internet.
O Que Isso Diz Sobre Nós?
A variação individual existe — e isso é o que torna o estudo da personalidade tão fascinante. Algumas pessoas sentem compaixão. Outras não. Algumas evitam a dor dos outros. Outras se divertem com ela.
Reconhecer isso em si mesmo e na sociedade é o primeiro passo. O segundo é escolher ativamente o que queremos reforçar: compaixão ou crueldade, empatia ou indiferença.
Referências Acadêmicas
Buckels, E. E., Jones, D. N., & Paulhus, D. L. (2013). Behavioral confirmation of everyday sadism. Psychological Science, 24(11), 2201–2209.
Paulhus, D. L., & Williams, K. M. (2002). The Dark Triad of personality: Narcissism, Machiavellianism, and psychopathy. Journal of Research in Personality, 36(6), 556–563.
Chabrol, H., Van Leeuwen, N., Rodgers, R., & Séjourné, N. (2009). Contributions of psychopathic, narcissistic, Machiavellian, and sadistic personality traits to juvenile delinquency. Personality and Individual Differences, 47(7), 734–739.
Anderson, C. A., & Bushman, B. J. (2002). The effects of media violence on society. Science, 295(5564), 2377–2379.
Chester, D. S., & DeWall, C. N. (2017). Combating the sting of rejection with the pleasure of revenge: A new look at how emotion shapes aggression. Journal of Personality and Social Psychology, 112(3), 413–430.