Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 17.
/Propósito, ideologia, ou objetivo. Temos que ter esses elementos dentro de nós para nos movermos. Eu sempre fui uma pessoa muito observadora, apesar de falar bastante. Essas características nem sempre caminham juntas, mas comigo sempre foi assim. Quem observa bastante normalmente fala pouco e quem fala muito nem sempre enxerga o que acontece à seu redor, mas por alguma razão eu consigo fazer essas suas coisas ao mesmo tempo.
A habilidade de observar fez com que tudo à meu redor se tornasse um tema de análise, ou quase um estudo, seja relacionado à cachorros ou pessoas. No meu trabalho com cães isso sempre me ajudou bastante, e sempre vai ser a minha maior fonte de informação, inspiração ou frustração. Vou explicar melhor.
A minha profissão de hoje é uma coisa muito nova. O trabalho de adestramento de cães é muito mais recente do que vocês imaginam e gerações anteriores, como a de meus avós, iriam rir se soubessem que existem pessoas que vivem dessa profissão. Cachorros e pessoas sempre conviveram juntos, mas de algumas décadas para cá, deixamos de praticar coisas simples, que sempre fizeram com que essa relação fosse possível. Que coisas simples são essas? Deixamos de determinar, e reforçar, nossas regras de convívio.
Claro que os cães que viviam com famílias nas décadas anteriores tinham outras limitações. Muitos deles não viviam dentro de casa e poucos faziam parte da vida social das pessoas, porém, muitos deles nem sonhavam em apresentar os tipos de problemas de comportamento que vemos nos cães de hoje. Lembrem que a maioria deles nem caminhava e poucos sabiam o que era uma coleira ou guia.
Eu estou fazendo esse paralelo por uma série de razões. A primeira delas é que hoje, vemos muita gente dizer que o cão só vai ser bem comportado se tiver todas as suas necessidades atendidas, como exercício físico, interação social, treinos diários e diversão. Se isso fosse verdade, todos os cães da década de 40 e 50 deveriam ser terríveis, e nenhum deles teria durado dentro de suas casas já que nesse tempo, nada disso existia como conceito primordial.
Outro ponto é todo esse esclarecimento sobre a famosa ciência, e como ela justifica uma série de problemas como genéticos ou naturais. Essa turma é aquela que diz que um cachorro não tem habilidade cognitiva para entender correções e qualquer punição pode traumatizar o animal para sempre. Considerando que nas décadas passadas não existiam os equipamentos de treinamento que temos hoje, nem o conhecimento sobre treinamento atual, como que os cães naquele tempo eram educados? Eles eram corrigidos com jornal enrolado, chinelos ou qualquer outra coisa que as pessoas tinham nas mãos. Será que todos eles eram traumatizados?
Nessa mesma época, não existia ração. Os cães comiam os restos da nossa comida e viviam bem assim. Hoje, há quem diga que os cachorros não podem comer nada além da ração seca, e por incrível que pareça, a mesma turma que fala que os cachorros não podem ser corrigidos, também não aceita a ideia da alimentação natural. É como se fosse fácil justificar um problema falando sobre a natureza do cão, mas inaceitável reconhecer essa mesma natureza na hora da nutrição. Curioso.
Por eu ser uma pessoa muito observadora, essas coisas sempre me chamaram atenção. Como que uma indústria de treinamento de cães, na era moderna, funciona com premissas tão simples de desconstruir? Como é que uma sociedade inteira esquece da sua própria história e passa aceitar coisas sem qualquer questionamento?
Mais cedo, quando falei sobre proposito, ideologia e objetivo eu quis chegar nesse ponto mais profundo dessa profissão. É o famoso aonde você quer chegar como treinador, e o que você realmente quer como objetivo, para você e os donos dos cães que você atende? Queremos expor a verdade e libertar essas pessoas desse coma psicológico ou queremos apenas ganhar o nosso pão de cada dia, seja como for?
O meio termo existe, mas requer esse elemento passional, essa vontade de quebrar a hipnose moderna e trazer as pessoas de volta para a realidade dos cães. O mais engraçado é que não existe nada de novo no treinamento dos cães, a não ser os equipamentos de treinamento modernos, mas a filosofia ainda é a mesma. Direção, motivação e correção. Ainda é só isso, com formas diferentes de fazer. Nunca foi complicado gente, mas em algum momento fomos sugados para o túnel de Alice no país das maravilhas e nunca mais encontramos a saída.
Hoje eu estava escutando uma análise de um treinador que falava o seguinte: “quem vocês acham que tem mais experiência no trabalho com cães? Será que é o professor acadêmico, com Ph.D. e vários títulos bonitos no seu curriculum ou o rapaz que cuida do manejo, limpeza e manutenção de um canil do estado?” Podem ter certeza que o rapaz do canil do estado seria um professor muito melhor do que qualquer acadêmico que existe por aí. Porque? Prática! Ele faz isso todos os dias. Ele pode não ser o melhor comunicador do mundo, mas ele sabe o que está fazendo e faz de olhos fechados.
Por alguma razão essas pessoas mais experientes não tem voz, e são engolidas por aqueles que defendem suas teorias com base em coisas que nunca saíram do papel. Eu acho isso tão curioso e vejo isso em todas as áreas de interesse social. O papel e o discurso se tornaram mais importantes do que a realidade. Todos esses debates sobre estudos científicos são colocados num pedestal como escrituras bíblicas, sem nunca terem sido comprovados, na prática, por ninguém. Em que mundo nós estamos? Como é possível acreditar numa teoria sem nunca colocar ela à prova, na prática?
Eu acho que aqui entra o lado passional e ideológico do treinador de cães da atualidade. Hoje, precisamos ser essa voz do bom senso e colocar essas práticas na frente das ilusões. Mais do que simplesmente fazer o nosso trabalho, precisamos relembrar as pessoas sobre essa agenda de manipulação, o tempo todo. Isso cansa, drena a nossa energia, e muitas vezes nos faz desistir. Por isso o proposito pessoal precisa estar em cheque.
Eu já falei em capítulos anteriores sobre a vontade de desistir. Em algum momento, todo o treinador que tem paixão pelo que faz, se sente desmotivado. É uma briga constante contra a realidade e o impulso de jogar tudo pra cima surge várias vezes. Sem a lembrança do seu proposito final, tudo pode se perder.
Esse momento de dúvida também existe na cabeça dos donos de cães. Eu tenho oportunidade de ver clientes, que já atendi no passado, que passaram por isso. Tudo vai bem até um certo ponto até que a vida traz mudanças e a pessoa perde o ritmo e a motivação. Acontece. Talvez por isso falamos tanto sobre o treinamento como um estilo de vida, já que é uma escolha a longo prazo e um modelo de convívio com um animal que precisa sobreviver aos altos e baixos da nossa vida de verdade.
O elemento humano nunca foi tão bombardeado de informações na história da humanidade, e não é a toa que as pessoas ficam soterradas num abismo de confusões. Acho que nosso papel é ter mais paciência para fazer esse filtro de desconstrução e ajudar a clarear o caminho para aqueles que estão perdidos. Isso requer equilíbrio mental e emocional nosso, sempre. Não adianta perder a paciência. Estamos numa batalha intelectual de informações. A nossa grande vantagem é poder mostrar a diferença entre a realidade e a ilusão, com provas práticas.
Hoje eu só queria que todos vocês lembrassem de suas habilidades naturais de observar e analisar a realidade ao redor de vocês. Para cada teoria proposta, busquem exemplos reais, fora do papel. Eu sei que o mundo da tecnologia nos deixou mais distantes, e buscamos muito conforto nesse cenário virtual, mas o mundo de verdade ainda existe lá fora. Se a proposta no papel for bonita, veja se na prática ela realmente funciona. Nunca esqueçam que é no mundo verdade que vivemos, e é nele que seu cachorro existe. É nesse mundo de verdade que sua vida com seu cão precisa funcionar. Entretenimento e maravilhas a gente deixa para o Netflix depois do jantar.
Ate breve.