Liberdade não supervisionada e o tabu sobre o uso da caixa de transporte no treinamento dos cães.

Falar de obstáculos no treinamento de cães parece simples, e quando eu falo de obstáculos, eu estou falando de percepção, ideologia e esclarecimentos dos humanos quanto ao que isso significa. Ao longo de todos esses anos, trabalhando com famílias diversas e seus cães, posso dizer categoricamente que o primeiro obstáculo a ser quebrado é a percepção que essa nova família tem sobre esse cão e a vida que ele pode ter com eles. Estamos falando aqui de hábitos simples, práticas diárias, engajamento e o que de fato fazer com esse animal.

Em todos os meus cursos, sejam em versão online ou presencial, quando tenho alunos que são novos profissionais, eu sempre sou questionada quanto aos equipamentos certos para o treinamento de cada cão em cada caso, e minha resposta normalmente é a mesma: “sim, os equipamentos de treinamento serão de enorme valia para todos os casos, porém, para que eles sejam usados com efetividade, a família precisa estar ciente do propósito deles, e estar de acordo com esse grau de comprometimento que envolve o humano no treinamento desse cão.” 

Eu sempre enfatizo esse ponto porque de nada adianta ter todos os melhores equipamentos de treinamento disponíveis no mercado quando o elemento de envolvimento e participação ativa do humano não está ali. Isso é crucial e sempre vai ser o real divisor de águas entre o sucesso e o fracasso de qualquer treinamento. Vou explicar melhor e chegar no elemento que é o grande tabu dos treinamentos para muitas famílias.

No título desse texto eu citei a liberdade não supervisionada como o grande desafio no treinamento dos cães, e agora vou elaborar melhor esse ponto para que vocês possam entender que esse elemento está muito mais relacionado com a percepção humana de um problema, do que um real problema para os cães. 

Muitas pessoas chegam até mim por conta do conteúdo extenso que eu tenho no meu canal do Youtube sobre coleira eletrônica (e-collar) e Prong Collar. As pessoas enxergam esses equipamentos como último recurso para resolver problemas de comportamento dos cães e não tem uma visão ruim desse uso, por incrível que pareça. Digo isso porque no mundo dos adestradores existe muito medo e insegurança desse diálogo aberto sobre o uso desses equipamentos e muitos desses profissionais acabam não falando sobre esse tipo de treinamento com medo de retaliação, quando na verdade, esse medo e essa percepção, só existem na cabeça deles, já que boa parte dos donos de cães não circulam nesse universo de profissionais e muitos nunca ouviram falar sobre esses equipamentos, logo eles não tem uma opinião formada sobre o assunto. 



Agora, o grande elemento que traz uma real hesitação por parte de muitas famílias ainda é a caixa de transporte e seu uso na rotina do cão em casa. Esse é o grande muro de Berlin! Porque? Porque é aqui que tocamos no elemento mais forte e determinante da relação entre os humanos e seus cães – a liberdade. As pessoas tendem a aceitar tudo sobre a proposta de treinamento dos cães até chegarmos na etapa de restrição de liberdade, já que é aqui que entra uma enorme responsabilidade nossa sobre o cão. Estamos falando agora de um envolvimento muito maior na rotina do cachorro, um controle de horários de atividades com muito mais disciplina e uma carga de tarefas com o cão que muita gente não imagina um dia ter que assumir. Vou explicar melhor.

Quando eu falo sobre o uso da caixa de transporte, muita gente imagina que eu estou propondo apenas deixar o cão lá dentro sem fazer nada além disso, ou seja, uma visão superficial e quase que cruel de uso desse equipamento, só que isso não poderia estar mais longe da verdade. As pessoas que usam a caixa de transporte na rotina de seus cães, sabem como essa escolha traz uma enorme responsabilidade e muito mais envolvimento do humano na rotina do cão. 

O cão vai precisar de inúmeros intervalos ao longo do dia para caminhar, treinar, se alimentar, usar o banheiro e ter momentos de interação. Tudo isso entra como uma lista tarefas bem definidas para o humano da equação, ou seja, muito mais responsabilidade. A ideia da caixa de transporte existe para simular a toca, que na natureza os cães buscam como local de descanso e segurança. Dentro da vida mais rústica, essa prática é comum em quase todos os mamíferos e pode ser facilmente observada em qualquer documentário sobre animais na natureza, logo é um fato irrefutável. 

No universo urbano, dentro do processo de domesticação, os cães foram se adaptando ao nosso mundo e tentando buscar lugares similares dentro desse universo. Muitos de vocês devem conhecer cães que gostam de dormir embaixo de cadeiras, mesas, sofás, embaixo de armários de cozinha ou em cantinhos menores que eles encontram na casa, quando não criamos esse local específico. Isso é um sinal típico desse hábito que está no DNA desses animais. O uso da caixa de transporte nada mais é do que a proposta desse lugar, com segurança e sossego para que o cão possa aguardar o momento da próxima atividade conosco. 

Dito tudo isso, o uso da caixa de transporte ainda promove esse momento de descanso mental, tão importante para que os cães possam de verdade relaxar, principalmente considerando que a vida doméstica urbana tem muitas distrações e estímulos constantes que não existem na natureza e fazem com que os cães fiquem constantemente em estado de alerta, especialmente quando falamos de famílias com múltiplos membros, aonde a circulação na casa é bem maior.



O grande problema de percepção humana que temos no mercado atual vem justamente dessa inabilidade de identificação sobre espécies e até mesmo a real definição do que é bem estar. Eu sempre faço analogias humanas já que sinto que as pessoas entendem melhor esses argumentos, então podemos usar exemplos simples como: “você gostaria de viver num ambiente aonde não existisse um quarto pra você? Aonde as pessoas circulasse, tivesse barulhos diferentes e você simplesmente estivesse ali? Sem nenhum lugar seguro e definido para você descansar?” Pois é essa a realidade do cão que não tem uma caixa de transporte. 

Mais do que isso, quantas vezes ouvimos falar de cães que destroem os móveis, latem constantemente para os barulhos da rua ou do prédio, se assustam com qualquer som e tem muita dificuldade de relaxar? Esses são os cães que tendem a ter mais dificuldade na rua e em diversos ambientes sociais também, já que eles não tem o hábito de desligar a mente, nem mesmo dentro de casa. 

Muitas pessoas que resistem ao uso desse equipamento, assim o fazem com a justificativa de que seria cruel deixar o cão sem liberdade constante, porém, na realidade, essas são as pessoas que não dedicam nenhum tempo em qualquer treinamento com seu cães, logo para elas não faz sentido a restrição já que a liberdade de circulação é a única coisa que essas cães tem. Vejam como existe um paralelo entre o grau de envolvimento na educação do cão e a responsabilidade que cada indivíduo está disposto a assumir nesse processo. 

As pessoas que tem uma rotina de educação real com seus cães, que realmente querem esses cães mais inclusos em suas vidas, normalmente não hesitam em usar a caixa de transporte já que faz total sentido prover para o cão esse espaço de descanso seguro, o que faz do uso da caixa quase que um privilégio, já que esse cão tem todo os resto das suas necessidades bem supridas.  

Vejam que aí está o grande paradigma da decisão do profissional em trabalhar ou não com uma família. Essa análise de perfil pessoal dos donos é que vai determinar até aonde o treinamento desse cão pode chegar. Mas para isso é preciso quebrar essa barreira, esclarecer os benefícios e mostrar como a vida de um cão que usa a caixa de transporte pode ser infinitamente melhor do que muita gente imagina. 

Quando não existe o uso da caixa de transporte na rotina, o cão pode até evoluir em alguns aspectos, porém, nunca esqueça que ele sempre vai ter a oportunidade de fazer uma série de escolhas quando não for bem supervisionado, já que nenhum de nós pode dedicar 24 horas por dia aos nossos cães. São nesses momentos que o cão cria os hábitos ruins, que muitas vezes perduram por anos a fio, sem solução. Esse é o grande segredo do treinamento eficaz dos cães: controle. Especialmente nos primeiros anos de vida do cão. 

Se pensarmos de forma inversa, e esquecermos qualquer treinamento formal de obediência, e considerarmos apenas a questão estrutural de rotina, um cão pode ser um bom companheiro se houver o uso da caixa de transporte na sua rotina, juntamente com caminhadas diárias e poucos exercícios de direção. Ou seja, essa questão estrutural pode, muitas vezes ser o grande elemento que faz com que um cachorro seja ou não um problema dentro da sua vida.  

Definição de rotina, horários de uso e tipos de atividades para cada cão podem variar de acordo com cada caso, e eu vou explorar um pouco mais sobre o assunto num próximo artigo, mas tenham em mente tudo que foi considerado aqui. Restrição de liberdade na rotina dos cães, é, e sempre vai ser o primeiro passo para reconstruir os hábitos do seu cão.