Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 13.
/O mercado de adestramento e comportamento canino tem dois lados. Existe o lado dos questionamentos dos donos de cães, com todas as suas dúvidas e perguntas, típicas de marinheiros de primeira viagem, e o lado dos profissionais, aqueles que já passaram por muitas situações e já viram de tudo - ou quase tudo. Nesse capítulo eu quero explorar essas duas visões, e como a minha transição, de uma pessoa que tinha apenas um cachorro, para alguém que passou a fazer disso uma profissão.
Conforme eu detalhei no capítulo anterior, minha transição levou um certo tempo. Como muitos de vocês, eu não sabia exatamente como fazer disso meu trabalho, e nem sabia realmente como essa categoria funcionava. Pra quem está de fora, o universo dos profissionais que trabalham com cães não é muito fácil de desvendar. Naquela época, era a explosão das creches e hotéis para cães e essa ideia era vendida como a melhor do momento. Milhares de reportagens saiam mensalmente falando sobre o sucesso desse modelo de negócio e como muitas pequenas empresas estavam faturando maravilhosamente nessa categoria. Muitos caíram nessa cilada.
Eu lembro que a era das redes sociais ainda estava em sua infância e existiam muito poucos profissionais com conteúdo online disponível. Era tudo meio que misterioso e as pessoas ficavam sabendo sobre bons profissionais apenas por indicação. Quando o Zico era pequeno, ainda com uns 5 meses, eu cheguei a contratar um profissional para fazer uma consulta comportamental. Lembro que achei bacana mas naquela época ele não fez nada na prática com ele, então a ideia do ajuste de comportamento canino e treinamento, ou adestramento, era muito segregada. Uma coisa era vendida como totalmente diferente da outra.
Eu cheguei a fazer um curso, algum tempo depois, com um profissional muito bem recomendado nesse mundo do adestramento. Na época ele já era um senhor, mas tinha uma reputação forte, então fui pra ver como tudo aquilo funcionava. Eu lembro que levei um caderno e fui anotando tudo que fazia sentido pra mim, e o que não fazia. A visão dele era mais do adestramento tradicional britânico, e eu já tinha a influencia do Cesar Millan, então muito do que ele disse não fez muito sentido pra mim naquele momento. Não porque ele tinha uma visão contrária, mas sim pela postura dele e a forma como ele apresentava o seu método.
No primeiro dia ele falou sobre uma raça específica e disse que esses eram os melhores cães do mundo. Depois fiquei sabendo que ele era criador dessa raça. Até ai eu entendo um pouco de favoritismo, por convivência, mas o tom dele foi mais prepotente e isso me deixou preocupada. Naquela época eu pensava que ali tinha uma turma de novos profissionais, e eles deveriam aprender de sobre cães de forma geral, sem esse tipo de influencia, mas tudo bem, fui levando. Nesse mesmo dia ele começou a falar sobre comportamento possessivo em cães, especificamente com comida. Ele mostrou um vídeo de um filhote de Golden Retriever de 3 meses, com um comportamento totalmente bizarro. O cachorro tinha uma postura de assustar qualquer um.
Ele disse que tinha um protocolo de solução infalível e que todos nós deveríamos usar pois teríamos sucesso. O protocolo era o seguinte. Deveríamos colocar comida em sete potes cheios, e oferecer os potes numa fila, um na sequência do outro, todos no chão ao mesmo tempo. Deveríamos esperar o cão chegar no último pote, e só aí tentar colocar a mão para tirar o pote do chão. A ideia era oferecer uma quantidade de comida tão grande que o cachorro eventualmente iria desistir dessa disputa com você. Eu quase cai da cadeira quando ouvi isso! O que ele estava propondo ali poderia custar a saúde, e talvez até a vida do cachorro. Imagina só quanto esse cachorro iria pesar na fase adulta? Mais do que isso, não era a solução, já que o comportamento possessivo estava apenas sendo evitado, e talvez até mesmo nutrido pela oferta exagerada de comida.
Eu contestei em vários momentos até que ele disse que não tinha tempo para responder minhas perguntas por conta do cronograma do curso. Não preciso dizer que nesses cursos os cães dos donos não participavam, pelo menos não dessa parte de protocolos de solução. Ele tinha um dia aonde ele trazia cães de uma creche para os alunos treinarem os comandos básicos apenas. Sai dali muito frustrada e percebi o quanto esse mercado ainda era falho. Nesse tempo, ninguém aqui no Brasil tinha um conteúdo gratuito, de valor, acessível para os donos de cães. Tínhamos apenas alguns poucos canais que existiam para vender cursos online, mas sem nenhuma real instrução prévia, logo, você literalmente tinha que pagar para descobrir se o curso era bom ou não. Eu nunca cai nessa armadilha.
Eu fui buscar informações nos treinadores de fora do Brasil. Alguns deles já tinham um formato de conteúdo muito melhor e muito mais bem explicado, a ali eu comecei a ver um trabalho que conseguia unir o lado de modificação comportamental e adestramento, ao mesmo tempo. Isso era novo pra mim e eu fiquei fascinada! Porque os treinadores daqui não faziam a mesma coisa?
Eu sentia que, de uma certa forma, era conveniente pra eles manter o público ignorante de informação, afinal era só assim que eles ganhavam seu sustento. O que eles não conseguiam ver, ou não queriam ver, era o estrago que estava sendo feito nos cachorros, e como muitos deles pagavam com a vida por essa escolha. A epidemia de abandono de cães sempre existiu, mas posso dizer que nessa época, foi explosiva, como ainda é.
Foi nesse momento da nossa história que as grandes marcas de produtos pet começaram as campanhas nacionais de adoção. Eram propagandas sobre isso o tempo todo, em todos os lugares possíveis, e com isso abrimos o tão milionário mercado da emoção. Eu admito que parte dessa iniciativa parecia ser muito bacana, afinal, quem não quer ver cães sendo adotados e tendo um final feliz? Mas a história não era bem assim.
Para muitas dessas empresas isso era apenas mais uma grande jogada de marketing que tinha como objetivo alavancar as vendas de produtos pet. O destino final desses cães era por conta de cada pessoa que embarcava nessa jornada, sozinho. Aonde eu quero chegar? Todas essas pessoas, que foram tocadas profundamente pela emoção, não tinham a menor ideia do que estavam fazendo e muitos desses cães voltavam para os abrigos depois da primeira semana, por conta de problemas de comportamento. A justificativa era sempre a mesma: “ele não se adaptou.”.
O grande lance aqui é que essas grandes marcas, com muito dinheiro investido, queriam manter essas campanhas num tom emotivo então todas as parcerias com adestradores eram feitas com base em certas condições. Os profissionais que toparam participar disso, não podiam falar em correções, restrições ou punições. Já dá pra imaginar como chegamos hoje, no grande alcance do pessoal do famoso “treinamento positivo”. Essa turma deitou e rolou nessa fase porque tinham um marketing milionário promovido por empresas enormes, dispostas a investir. Uma mão lavou a outra e chegamos hoje aonde estamos.
Nessa fase, os profissionais que sabiam trabalhar com motivação e correção não se mostravam, não apareciam e apenas falavam sobre o assunto em conversas privadas. Te parece familiar? Todos ficavam escondidos, com medo de serem criticados, e foram caindo no estigma dos adestradores criminosos. O outro lado foi ganhando espaço e algumas grandes empresas de adestramento nasceram nesse vácuo. Essas empresas ganharam nome, e mesmo sem mostrar resultados reais, elas foram se espalhando na internet como lava de vulcão. O outro lado, nada!
Falando assim, dá pra ver que o que acontece hoje é apenas um reflexo do que começou lá atrás. Eu lembro que quando comecei meu website e meu canal do Youtube, muita gente me criticou. Me falaram que eu iria ser odiada e destruída pela audiência e que ninguém iria aceitar essa propagação de informações absurdas. Como assim falar de prong collar, colar eletrônico e caixa de transporte? Eu deveria estar louca! E quem era eu pra fazer vídeos mostrando resultados na prática? Assim eu estaria prejudicando o mundo do adestramento, porque as pessoas nunca mais iriam pagar para ter aulas com um adestrador. Foi isso que eu ouvi, dos profissionais que conhecia na época.
Eu me lembro que quando comecei meu website, eu queria que ele fosse um Wikipédia do mundo do treinamento. Eu fiz uma coisa que eu sempre quis encontrar. Um portal de informações sobre tudo que um dono de cachorro precisa saber, na lente da realidade. Meu canal do Youtube seguiria a mesma linha. Eu usaria aquele espaço para abrir o jogo e falar sobre tudo que os outros não falavam. Desde o início eu tentei fazer parcerias. Convidei todas as pessoas, que eu considerava competentes, para participar. Ninguém aceitou. Nenhum deles quis se comprometer com esse desafio e o medo de perder era maior do que a vontade de arriscar. Fui sozinha então.
Nos primeiros dois anos de vida pública eu fui xingada de todos os nomes que vocês puderem encontrar no dicionário, e talvez mais alguns. Perdi muitas pessoas que seguiam a minha página e recebi críticas diariamente. Eu nunca respondia, apenas deletava o comentário e bloqueava a pessoa. Isso foi uma grande lição que eu tive lá atrás, com um excelente profissional americano. O curioso dessa fase foi ver como, nesse mar de agressões verbais, veio uma nova comunidade de curiosos. Começaram a aparecer pessoas realmente interessadas na minha proposta de trabalho, já que haviam tentando outros métodos sem sucesso. Nessa época eu comecei a fazer o meu programa de perguntas e respostas e fiquei chocada com a quantidade de pessoas que tinham as mesmas dúvidas, sempre. Esse foi o meu grande laboratório de informações.
Nessa fase eu respondia todas as perguntas, de todas as pessoas, em vídeos no Youtube. Eventualmente comecei a fazer as transmissões ao vivo e só vi essa comunidade crescer cada vez mais. O que ficou muito claro pra mim foi o resultado da grande confusão entre o adestramento e a modificação comportamental, e como os donos de cães não sabiam como juntar os benefícios de ambos os lados. Mais do que isso, existia uma lacuna enorme sobre o que fazer com o cachorro quando ele não está numa sessão de treinamento ativa.
Gente, isso dá uma enciclopédia de estudos e esse fluxo não tem fim. Era nítido o que estava faltando para os novos donos de cães: esclarecimento real sobre como usar o treinamento do cão na rotina de vida das famílias. Era simples mas ninguém falava sobre o assunto numa linguagem informal e objetiva. Foi assim que eu encontrei o espaço vazio nessa profissão e passei a ocupa-lo.
De lá pra cá algumas coisa mudaram, e outras não. Ainda temos muito que conquistar, mas no próximo capítulo eu quero falar sobre a evolução dos novos treinadores e como as batalhas dentro dessa classe foram ficando mais inflamadas e cada vez mais sérias. Vamos explorar a postura dos donos de sucesso e como até eles sofrem essa mesma discriminação por fazerem parte do que eu chamo de movimento da resistência. Tudo isso e muito mais no capítulo de amanhã.
Até breve.