Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 03.

Minha carreira no trabalho com cães pode ser descrita em algumas fases. Mas hoje eu quero falar sobre a minha fase de início dos atendimentos presenciais, ou seja, quando eu comecei a pegar casos e atender os clientes em suas casas. Essa é a fase mais difícil e desafiadora para todos os profissionais.

É nessa etapa que você coloca à prova tudo que sabe e descobre tudo que ainda precisa aprender. Antes dessa fase eu tinha o meu espaço e trabalhava dentro dele com grupos de cães. O contexto dentro de um espaço com grupos de cães é muito mais previsível e, apesar dos desafios, tudo acontece dentro de uma dinâmica mais simples e com expectativas menores no sentido de modificação comportamental. 

Quando passamos a atender os clientes em suas casas, somos expostos à diferentes tipos de cenários e limitações que jamais vamos ver dentro de um espaço dedicado à cães, e é aqui que aprendemos o valor do trabalho individual com cada cão, e os reais problemas enfrentados pelas famílias.

Um dos primeiros casos que eu atendi foi de um casal que tinha uma Jack Russell jovem. Não era uma filhote mas deveria estar com menos de dois anos na época. Essa cachorra era muito agitada, puxava bastante na guia e os donos tinham dificuldade de gerenciar a rotina com ela com mais tranquilidade. Nessa época, eu usava apenas guias unificadas para treinar e trabalhava também com a alimentação dos cães nos treinos.

Eu lembro que quando cheguei lá a primeira coisa que a cliente me disse foi: “não ofereça nada de comer pra ela por conta dos problemas de alergia. Ela só come comida natural nos horários adequados.” 

Já de cara uma das alternativas que eu tinha para moldar alguns treinos com ela estava fora de questão. A rotina da família exigia que a cadela ficasse sozinha em casa por muitas horas e a possibilidade de horários para caminhadas eram bem limitados. Esse não foi um caso excepcional mas foi um caso que me fez repensar sobre muitos dos conceitos que eu tinha na época. 

Se falava (e ainda se fala) muito em “gastar energia” do cachorro pra deixar ele satisfeito e cansado, mas dentro da realidade dos cães de família isso é bem diferente. Nós como treinadores vivemos para isso. Nossa rotina gira em torno de cães e esquecemos que a vida de nossos clientes não é assim. Boa parte da famílias que tem cachorros vive uma vida que eu chamo de normal. Todos tem seu trabalho, suas atividades extracurriculares, seus momentos de diversão e lazer e seu tempo de descanso. O cachorro é apenas mais um elemento que precisa se encaixar nessa realidade.

Diferente de nós, para essas pessoas, todo o resto é prioridade, logo o tempo dedicado ao cachorro é muito menor. Isso não pode ser visto como um problema, já que o nosso papel como profissionais é mostrar ao cliente como encaixar o treinamento dentro da vida real que ele tem. Eu precisei ver muitos casos diferentes para entender que as soluções estavam nas pequenas coisas, nos pequenos detalhes de práticas que fariam a diferença na rotina com cada cão e sua família. 

Um outro caso que me lembro bem foi de uma família com dois filhos pequenos, entre 5 e 7 anos de idade. Eles haviam adotado um cachorro, que ficou relativamente grande e desajeitado muito rápido. Esse cachorro era impossível de caminhar na rua por conta da empolgação e agitação com aquele tamanho todo. Além disso, em casa ele era uma loucura. Roubava comida da mesa, derrubava as crianças, não sabia ficar parado e era um desastre completo. 

Por mais que esse cachorro fosse complicado, foi muito mais difícil educar a família do que o animal. Eu lembro que tivemos muitas conversas e muitos diálogos esclarecedores sobre o porque das restrições, o porque não incentivar a interação com o cão o tempo todo e porque era importante saber dar direção e corrigir esse cão. Nesse caso ficou nítido pra mim que o trabalho do profissional é muito mais intelectual do que prático. Nossa habilidade no treinamento em si é essencial, porém, sem a paciência e a capacidade de argumentação sobre a fundação desse convívio devido com cães, nada funciona. 

Eu tenho que admitir que o trabalho individual com as famílias é extremamente cansativo. Essa é uma modalidade que drena toda a sua energia e você chega em casa com a sensação de que foi atropelado por um caminhão. Você absorve todos os problemas que a família está vivendo e ao mesmo tempo lida de frente com todas as dúvidas e objeções. Apesar de ser um trabalho mentalmente pesado, é aqui que o profissional aprende mais do que em qualquer outro lugar. 

Eu já atendi casos aonde vi coisas que eu nunca poderia imaginar. Já atendi famílias com 8 cães em um apartamento, todos criados soltos, sem nenhum deles ter jamais saído de casa. Já atendi famílias que vivem com 2 cães em espaços de 30 metros quadrados mas fazem milagres numa rotina com atividades externas. Já atendi casos aonde uma família de 3 pessoas vive com um cão pequeno, e cada um deles tem uma forma diferente de lidar com o cachorro. Gente, eu já vi muita coisa, e tudo que vi dentro do cenário real de família me provou que existe uma lacuna muito grande entre o que os profissionais aprendem e pensam, e a realidade desses cães. 

Foram anos entrando e saindo de casas diferentes, conhecendo pessoas diferentes, e vendo o que era possível fazer em cada um desses casos para ajudar essas famílias. O mundo real é muito diferente do que se mostra nos cursos e centros de treinamento para cães. Na vida real, a maioria desses cães tem sorte de ter uma caminhada por dia, e alguém que organize bem a dinâmica de interação dentro de casa, com segurança e certeza do que está fazendo. 

Diante dessa realidade eu fui reformulando meus conceitos e formas de trabalhar os cães, tornando tudo mais simples e mais aplicável para o que eu chamo de vida doméstica urbana. Eu entendi que se um cão estiver seguro e confiável em casa, e souber o que fazer em ambientes sociais, ele tem muito mais chances de ter uma vida mais rica em experiências junto com seus humanos. Quanto mais controle tivermos sobre todos os aspectos da vida do cão, mais fácil fica viver com ele, dentro e fora de casa. 

Eu não vou negar que existe um momento aonde tudo de confunde na sua cabeça de treinador. Você se questiona se está simplificando demais, se precisa trazer mais complexidade para o seu treinamento ou se precisa de técnicas mais avançadas. Muitas vezes já me vi em atendimentos aonde apenas conversava por horas com os clientes, e pouco fazia com o cachorro. Muitas vezes, com um cachorro que não sabia ficar parado, a aula era uma sessão do exercício do place por uma hora enquanto a conversa progredia sobre o treinamento e os aspectos da adaptação familiar com cão.

É curioso apontar que nos atendimentos presenciais, muitas vezes você tem um plano e imagina que vai ter uma boa aula prática com o cachorro, mas chega na casa do cliente e descobre que naquele dia ele precisa conversar, talvez sobre outros aspectos da vida, que nem envolvem o cachorro diretamente. É uma montanha russa de descobertas que só acontece quando você entra no cenário real do cliente.

Falando em aulas na prática, quando atendemos o cliente em casa, tudo acontece com muito mais rapidez e menos requinte do que esperamos. Normalmente, numa primeira sessão, você já faz introdução de equipamentos e já leva o cachorro para caminhar. Esse momento é aonde você descobre como o cachorro se comporta no universo social dele, junto com seu dono. Tem bairros com ruas estreitas, cheias de comércio e barulhos, muitos cachorros, e ainda assim você precisa fazer acontecer ali, com o dono do seu lado. 

Existem casos aonde você trabalha mais o cão dentro de casa, mas ainda assim, as limitações do espaço podem ser muito mais desafiadoras do que você imagina. Nesse momento é importante focar no que você consegue materializar naquele espaço, naquelas condições, e ter um diálogo honesto com a família sobre o que eles podem esperar à longo prazo desse treinamento. 

Eu acredito que o tempo e a experiência nessa categoria de atendimento presencial te dá uma visão muito mais ampla e real como profissional. Depois de ver essa realidade fica muito mais fácil pensar um criar um programa de treinamento que vai fazer sentido para cada família e seu cão. Dito isso, pensem em progredir e fazer programas de treinamento intensivo aonde o cão fica com você por um período de tempo específico. Porque? Porque um treinamento de verdade só acontece quando seguimos um planejamento pensando em resultados e prazos. Isso normalmente não acontece quando vemos o cão e a família uma vez por semana. 

O treinamento intensivo também te dá a oportunidade de evoluir mais rápido com o cachorro, e proporcionar para ele experiências melhores, muito mais cedo, deixando ele melhor preparado para ser conduzido pelo dono à longo prazo. No treinamento intensivo você também conhece melhor o cachorro, e sabe exatamente aonde você precisa trabalhar. Muitas vezes o segredo está nos pequenos detalhes. Essa é uma janela incrível de aprendizado também. 

Falando em aprendizado, no próximo capítulo eu quero explorar as diferenças entre a minha experiência com grupos de cães e os treinamento individuais, e porque a identificação dessa diferença foi um divisor de águas no meu trabalho com os cães. 

Até breve.