Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 04.
/Como muitos treinadores de cães, na década passada, eu também fui fortemente influenciada pelo programa encantador de cães com Cesar Millan. O termo “o poder da matilha” foi muito usado e vendido como solução para o que era chamado de reabilitação de cães.
Naquela época, todos nós ficamos maravilhados com as mudanças que víamos nos cachorros, e todos se encantaram com a possibilidade de trabalhar com grupos de cães, afinal, estávamos vendo, com nossos próprios olhos, todo o lado instintivo dos animais que só conhecíamos como pets. Foi nessa época que muitas pessoas resolveram pegar um segundo ou terceiro cachorro. Foi nessa mesma época que surgiram as creches para cães e os espaços pet com a proposta de socialização. Foi o início de uma crise que iria explodir anos depois.
Não me levem a mal gente, eu soube apreciar muitas coisas daquela época e aprendi bastante sobre convívio com cães em grupos, afinal, nesse tempo eu cheguei a ter 6 cães meus. O lado bom desse tempo foi ver uma janela nova aberta para um diálogo sobre comportamento canino, linguagem corporal e instinto, porém, o que muita gente não entendeu, foram os riscos envolvidos nesse formato de trabalho e vida, e que tipo de atitude humana deveria vir junto com essa escolha. Vou explicar melhor.
Quando assistíamos o programa víamos apenas 45 minutos de cada episódio. Claro que sabemos que é assim que a televisão funciona e muita coisa acontecia num treinamento de 2 meses, porém, o que não era mostrado ficou num espaço de dúvida e incerteza para as pessoas. Vamos à alguns exemplos:
Cães da mesma casa que brigam: em vários episódios víamos momentos desses cães caminhando juntos, e até mesmo com múltiplos outros cães. Víamos momentos com esses cães circulando livres em quintais de casas e até em parques, porém, o que não poderíamos ver é o dia a dia desses cães e a rotina da família com eles.
Cães que mostravam agressividade: Víamos o primeiro momento de apresentação do cão ao Cesar Millan, víamos alguns momentos de caminhada e uma ou outra apresentação do cão à outros ambientes, porém, novamente não víamos a parte de gerenciamento da rotina individual do cão, dentro de casa, com a família.
Lembro que um episódio aonde um casal tinha um Rottweiler com reações muito explosivas na rua, especialmente com outros cães. Foi mostrada a aproximação com novos cachorros e uma caminhada, mas no final do episódio o cachorro estava deitado no colo dos donos, da mesma forma que estava no início do programa. Aquilo ficou na minha cabeça, já que essa demonstração deixava claro como não havia ainda uma mudança na mentalidade dos donos sobre o controle da conduta do cão em todos os momentos da vida doméstica.
Esses são os detalhes que faziam a diferença e por isso, à longo prazo, comecei a entender a real necessidade do trabalho individual com cada cão. Nesse caso em particular, sem sombra de dúvidas era necessário trabalhar esse cão em muito mais detalhes, com outros equipamentos de treinamento, e mais atenção, para garantir que ele estaria seguro com a família, dentro e fora de casa.
Os casos de agressividade e brigas entre cães da mesma casa, são outros exemplos aonde fica clara a necessidade de trabalhar cada cão separadamente, para evitar acidentes e garantir que cada indivíduo entenda as regras, primeiro sozinho, para depois fazer o mesmo da presença de outros cães. A rotina dentro de casa, o uso da caixa de transporte, os comandos de obediência que seriam úteis no manejo diário desses cães não existia nesse programa. Era muito mais ação e reação instintiva que tinha um efeito imediato mas era não transferível, e isso não resolvia o problema desses cães à longo prazo, mas fazia um bom show.
Quando o programa mostrava todos aqueles cães juntos, no mesmo espaço, pouco sabíamos sobre a rotina deles. Era bacana mas era subjetivo também até porque aquela não é a realidade das famílias que tem cachorros. Ninguém vive num rancho ou num espaço como aquele, e isso já muda o cenário real de vida desses cães.
No capítulo anterior eu falei sobre como pode parecer mais fácil trabalhar com grupos de cães num espaço dedicado, já que aquele é um ambiente seu, controlado e feito para esse propósito. No mundo real os cães estão dentro de casa, entre a sala, a cozinha, os quartos e o banheiro, o movimento de entra e sai das pessoas, com campainha tocando, vizinhos falando, e é ali que ele precisa aprender a funcionar bem.
Vendo por esse ângulo, faltava ali, naquele programa, essa realidade. Faltava também avaliar a habilidade das pessoas de manter o controle sobre esses cães enquanto eles estavam fisicamente livres para fazerem outras escolhas, sem qualquer equipamento de treinamento. Essa habilidade é de poucos e talvez seja por isso que muitos dos casos apresentados no programa não tiveram sucesso depois com as famílias. Muitos desses cães voltaram para o espaço dele e passaram o resto de suas vidas lá. Eu não poderia jamais correr esse risco na minha carreira já que eu não teria como acomodar na minha casa todos os cães que não se adaptassem nas casas de suas famílias.
A partir daí eu precisei buscar mais informações a aprender sobre essa lado do treinamento. Foi nessa época que eu mergulhei no universo da coleira eletrônica, e dos outros equipamentos de treinamento que poderiam ajudar os donos a manterem o controle sobre seus cães depois de um treinamento que iria envolver todos esses aspectos da vida familiar, sem os mesmos riscos.
Pessoal, eu quero deixar claro que admiro muito o trabalho do Cesar Millan. Eu aprendi muita coisa com ele, e fui até lá nos EUA conhecer de perto essa realidade e fazer o curso dele. Mas em todo aprendizado, é preciso ter senso crítico e ver o que funciona no seu mundo e o que não é aplicável. O universo dele ali é incrível mas é totalmente diferente da minha realidade e da realidade dos cães que eu atendo. Essa minha observação vale não só para ele, como para outros grandes profissionais que também são uma grande referencia para mim. Saber fazer essa diferença pode ser a sua salvação como profissional, acreditem em mim!
Quando comecei a estudar sobre a coleira eletrônica no treinamento para cães ficou nítido pra mim que esse grau de sucesso eu jamais iria conquistar sem um trabalho individual com cada cão. Nesse formato o que conta não é o poder da matilha, mas o seu poder, como humano, de influenciar o comportamento de cada cão, antes mesmo de uma matilha se formar. Uma vez construída essa referencia, trazer um segundo cão para o contexto fica muito mais fácil.
Se pensarmos em construção de matilhas, na natureza, isso tem muito mais lógica, já que os grupos de cães de rua urbanos se formam aos poucos, uma vez que a hierarquia é estabelecida entre indivíduos. Mais do que isso, boa parte dos casos que eu atendo são de 1 ou 2 cães na mesma casa. Esses cães nunca vão conviver com grandes grupos de cães e a rotina dessa família é muito mais dentro do que fora de casa. Muitos desses cães são um problema dentro da rotina simples que a família tem e quase que não conseguem fazer muito fora de casa por conta dessa falta de controle. Tentar fazer tudo de cara, com 2 ou mais cães ao mesmo tempo, pode ser muito frustrante e tente a ser um processo muito mais limitado, já que cada cão sempre vai ser uma distração para o outro. Ambos já tem uma referencia forte de convívio e você precisa de tempo para poder influenciar cada um deles da forma adequada.
Essa era deixou marcas, marcas difíceis de serem apagadas. Por conta desse período muitas famílias acreditam que 2 ou mais cães da mesma casa devem ficar sempre juntos, e soltos. Muitas pessoas acreditam que eles precisam se corrigir e se organizar sem a nossa intervenção. Muitas pessoas acreditam que os cães sozinhos se resolvem e o que a melhor forma de socializar um cão é colocando ele para conviver em parques, praças ou creches para cães. Por conta dessa era, também, ainda temos o conceito de que um cão cansado é um cão feliz, e que tudo que um cão precisa para ser equilibrado é viver em matilha.
Nem tudo isso pode ser colocado na conta do Cesar Millan, mas sim da interpretação sugestiva que foi feita por cada nicho de adestramento. Eu acredito que nosso papel hoje, como profissionais, é limpar essa área nebulosa e trazer o trabalho para a nossa realidade. É nosso dever desafazer os mitos e mostrar como cada treinamento deve ser feito pensando em cada realidade.
Falando em nossa realidade, no próximo capítulo eu vou falar um pouco sobre a minha realidade com as meninas, e como essa mudança de estilo de treinamento fez toda a diferença na minha geração nova de cães.
Até breve.