Confissões de uma treinadora de cães: Capítulo 05.
/Todo treinador de cães já teve, em algum momento, problemas com seu próprio cão. Essa é quase que uma regra nessa arena profissional, e devo dizer que é uma boa regra, já que assim começamos a entender, em toda sua plenitude, o que é o trabalho de modificação comportamental com cães. Comigo não foi diferente.
Hoje eu vou falar um pouco sobre a Lucy, uma das mais velhas aqui de casa, e uma que veio para mudar todo o conceito que eu tinha sobre comportamento canino e treinamento de cães. Era meados de 2011, eu já tinha o Zico e a Malu. Nessa época eu estava num relacionamento que não estava indo muito bem. Era um período de muitas transições pra mim, inclusive no lado profissional, e no meio de tudo isso a Lucy apareceu.
Lucy foi encontrada nas ruas da Granja Viana, por uma amiga minha que resgatava alguns cães da região. Essa amiga eu conheci quando adotei a Malu. Foi ela que encontrou a Malu naquela mesma região e a trouxe pra mim. Ficamos amigas e me lembro quando ela falou sobre a Lucy. Meu namorado, na época, nem queria saber de mais um cachorro aqui, mas eu fiquei curiosa e um dia fui até a casa da minha amiga, junto com o Zico a Malu, para ver quem era essa cachorra.
Eu lembro que quando cheguei ela ficou distante, olhando de longe, só estudando nossos movimentos. Zico e Malu sempre foram uma dupla muito tranquila. Ambos eram bem seguros e respeitosos, logo ficaram explorando o ambiente sem dar muita ênfase a presença da Lucy, que na época se chamava Violeta. Eu adorei ela, mas não tomei nenhuma decisão naquele momento, apenas voltei pra casa pensando nessa possibilidade.
Dias depois eu liguei para minha amiga e falei que ficaria com ela. Combinamos o dia pra ela chegar aqui e assim comecei a me programar pra mais esse novo desafio. Meu namorado detestou a ideia e uma semana depois nosso relacionamento terminou, mas essa é uma outra história para um outro dia. A Lucy chegou numa sexta-feira e marquei a castração dela para o dia seguinte. No sábado, logo cedo, fomos à clinica, ela entrou na cirurgia e eu sai para trocar o óleo do carro. Minha veterinária já era uma grande amiga e eu tinha total confiança no trabalho dela, então não tive nenhuma preocupação. Meia hora depois, no posto de gasolina, eu recebo uma ligação da veterinária dizendo: “Raquel, eu tenho duas notícias para te dar. Uma é que você ia ser avó, e a outra é que eu já interrompi essa gestação porque te conheço e seu qual seria a sua decisão.” .
A Lucy estava prenhe e nós não sabíamos. Ela estava esperando 5 filhotes, mas ainda com apenas 20 dias de gestação, então, sabendo da minha realidade, num apartamento, e com mais dois cães adultos, a decisão foi de interromper esse processo. Lembro que fiquei assustada e surpresa, mas sabia que esse era o melhor caminho já que seria impossível dar conta de 5 filhotes aqui, além da Lucy, Zico e Malu, então assim foi o nosso primeiro susto.
Lucy, quando chegou, também tinha um quadro de sarna negra. Toda a extensão do pescoço não tinha pelos e era apenas carne viva, já em recuperação. Medicamos, e em três meses ela estava 100%, sem qualquer resquício de problemas, e mesmo sabendo que essa doença não tem cura, e pode se manifestar quando a imunidade do cão cai, eu tinha certeza que ela ficaria bem. Ela ficou. Em 10 anos aqui comigo ela jamais teve nenhum sintoma.
Nas primeiras semanas notei que ela era uma cadela bem mais insegura e desconfiada. Zico e Malu sempre foram muito confiantes. Eles eram uma dupla boa demais pra ser verdade e eu tinha muito eles como base de percepção, até a Lucy chegar. Lucy estranhava barulhos estranhos, pessoas estranhas e qualquer coisa diferente no ambiente. Mais do que isso, ela vocalizava – no popular: o cachorro que late. Parece bobagem mas até então essa não era a minha realidade. Eu via as pessoas falando desses cães que latem para tudo e sempre achava que era um problema de postura dos donos, de falta de liderança ou pulso fraco, mas agora esse cachorro estava aqui, na minha casa, fazendo a mesma coisa. Socorro!!!
Eu sempre detestei barulhos! Sou como uma coruja, de olhos abertos que trabalha em silêncio. A Lucy passou a ser um desafio pra mim nesse sentido. Nessa época o modelo de treinamento que eu tinha como referencia era do Cesar Millan, com as correções de toque físico, exercício, disciplina e afeto, e todo aquele mantra. Eu sempre fui muito firme com meus cães e nunca tive problemas em colocar eles em seu lugar, mas esses latidos repentinos estavam me tirando do sério.
Eu sempre caminhava bastante com os cães, e exercício sempre fez parte da nossa rotina. Lucy se adaptou bem aqui com o Zico e Malu, e sempre respeitou muito bem o espaço deles. Ela era jovem quando chegou, e eu imagino que ela deveria ter 1 e meio no máximo. Foi importante pra ela ter tido convívio com o Zico e Malu, já que eles eram bem tranquilos e foram uma referencia legal pra ela, porém, ela criou uma relação comigo bem diferente.
Lucy era atenta, muito ligada a mim, mas sempre foi uma cachorra que não gostava de colo ou muito afeto físico, mas ela precisava pertencer. Muitos cães são assim, especialmente aqueles mais inseguros, eles precisam de uma referencia para ter um norte. No primeiro ano dela aqui, eu consegui trabalhar em muitas coisas com ela, mas sentia que a questão dos latidos, e da ansiedade por antecipação (comportamento impulsivo) era ainda um desafio maior. Na fase jovem dela, eu cheguei a fazer caminhadas de 15km com ela e a Kika, coloquei elas na natação e mesmo assim ainda sentia que faltava alguma coisa, já que nenhuma atividade física eliminava esses pequenos problemas.
Ainda sobre os latidos, eu me lembro da primeira vez que coloquei a Lucy na caixa de transporte porque precisava sair. Era uma saída relativamente rápida, por volta de 1 hora e meia no máximo. Essa cachorra latiu tanto que eu não sei como ela não teve um ataque anafilático. Quando eu voltei, tinha uma poça de baba no colchonete que estava dentro da caixa. Tirei ela de lá, ela bebeu 1 litro de água e depois dormiu a tarde toda. Depois desse episódio, a caixa de transporte virou o lugar preferido dela. Era só ali que ela conseguia desligar e relaxar de verdade. Ela virou a rainha da caixa, e sempre que queria descansar ela ia pra lá.
Por conta da Lucy, eu fui atrás do treinamento com a coleira eletrônica. Foi nessa fase que eu descobri tudo que estava perdendo quando trabalhava apenas com uma guia unificada. Estudei muito sobre esse equipamento e entrei nesse universo de corpo e alma. Comprei minha primeira e-collar e minha primeira Prong Collar e mergulhei fundo nesse treinamento. Um novo mundo se abriu. Era inacreditável ver como tudo tinha ficado mais fácil e a forma de intervir no comportamento dos cães ficava mais simples. Agora eu tinha a habilidade real de controlar meus cães em situações e cenários diferentes.
Daí pra frente peguei nos detalhes de todos os momentos aonde ela não sabia se controlar, como na hora da alimentação, o ritual antes da caminhada e tudo que envolvia elementos de gatilho para essa resposta mais agitada. Foi incrível ter passado por esse processo com ela, e também com a Kika, mas posso dizer que se a Lucy nunca tivesse entrado na minha vida, minha percepção sobre modificação comportamental nunca teria mudado. Eu ainda acreditaria que a minha energia seria o suficiente para influenciar a resposta de comportamento dela, e olharia esse problema como culpa do dono. Nada como colocar o sapato no outro pé para entender o que é o problema de verdade.
Eu acho que a Lucy foi para mim, como muitos casos de treinamento intensivo acabam sendo para muitos treinadores. É o famoso “tem que viver para crer”. Pra nós, que estamos de fora, é muito fácil julgar o cliente e dizer que ele não tem pulso firme, porém, quando vivemos essa situação dentro da nossa rotina, passamos a ter uma outra visão, talvez até com mais compaixão por aqueles que querem fazer certo mas não sabem como.
Vale lembrar aqui que a Lucy nunca foi agressiva com outros cães, nunca atacou ninguém, nem jamais teve qualquer problema com os outros cães meus. Apesar de ela ser mais arisca e mais desconfiada, eu sempre monitorei ela de perto e nunca deixei que ela colocasse nenhum dos meus cães, ou ninguém em risco. Esse não era o meu problema. Como eu falei antes, disciplina é o meu forte, e eu não tenho nenhuma reserva em bater de frente com um cachorro, se for preciso. O que me fez ir numa outra direção, no sentido de treinamento, foram os latidos, a impulsividade e a dificuldade de intervir com clareza nos momentos de agitação.
Eu acho importante mencionar isso porque muitos profissionais só se questionam quando alguma coisa muito grave acontece. Esse não foi necessariamente o meu caso. A Lucy estava adaptada aqui. Ela convivia bem, não só com os meus cães, mas com os cães que eu tinha no meu espaço na época. Ela conviveu com dezenas de cães diferentes durante muito tempo, sem qualquer problema, logo, nem sempre o que nos leva à um caminho diferente é o problema mais grave, aos olhos do mundo, mas sim o problema que te incomoda. É tudo uma questão de você se cobrar em relação ao resultado que você quer ter.
A Lucy cresceu, amadureceu, e hoje vive muito melhor. Ela ainda é um desafio maior do que outros cães já que ela precisa ser lembrada dos limites dela quando certas situações se apresentam, porém, ela navega muito bem dentro desse meu mundo, mesmo com todas as surpresas e chegadas e saídas de novos cães aqui em casa. Ela zela muito bem pelo espaço dela e sabe respeitar cada novo cão que chega aqui para treinamento. Ela prefere assim, sem muito contato, cada um no seu quadrado. Se você deixar o espaço dela seguro, fica tudo bem. Se colocar ela no meio de uma confusão, ela não perdoa. Isso não é um problema já que eu compartilho da mesma postura. Como eu não gosto de confusão aqui, eu não permito isso com os cães, e todos eles aprendem essa mesma lição.
Lucy é uma cachorra de saúde forte, pequena de porte, com uma personalidade bem peculiar. Ela amadureceu bastante e hoje é muito mais segura de si e mais confiante. Ela adora a Kika, e ignora qualquer outro cachorro. Ela ainda está esperando o dia em que a Emma vai embora e ela finge que a Pippa não mora aqui. Ela nunca ficou doente em 10 anos e tem uma disposição invejável, morre de calor mesmo quando está fazendo 16 graus lá fora e adora quando a casa está em silêncio, só com o barulho baixinho de uma música instrumental, e eu estou escrevendo meus textos no computador. Essa é a minha Lucy. Sempre presente, vendo tudo com uma certa distância. Ela foi, e ainda é, uma das minhas maiores lições.
No próximo capítulo eu vou contar mais sobre a história da Kika, e como ela se tornou a grande companheira da Lucy durante todos esses anos.
Até breve.