Como construir mais confiança em cães inseguros e medrosos.
/Confiança é uma sensação quase que indescritível de tão boa que é! É saber enfrentar os medos, saber encarar as consequências de suas escolhas e seguir em frente, seguro de sua habilidade de lidar com o esperado e o inesperado. Insegurança e medo já são sensações inversas, que nos aprisionam num universo de hesitação, incerteza e inabilidade de lidar com, às vezes, coisas simples da vida.
Quando falamos de cães, infelizmente insegurança e medo são ainda muito presentes na vida doméstica urbana. Muitos cães são mais sensíveis por natureza e outros, não superam a fase natural de insegurança que é comum na fase de filhotes. As consequências disso podem ser variadas, mas boa parte delas não é nada boa para esses animais. Viver com essas sensações pode aprisionar o cão à uma vida de isolamento e restrições, sem boas perspectivas de real inclusão.
Hoje vamos falar de soluções e como lidar com cães com essas características, mas primeiro é importante esclarecer que todos os cães, especialmente na fase de filhotes, apresentam algum tipo de insegurança. Faz parte da natureza do processo de construção de associações. Nosso papel é saber motivar os novos aprendizados e advogar por eles nessa etapa de construção. É aqui que está o elemento essencial que vai definir a real superação. Mas como colocar isso em prática?
O primeiro passo para todos que tem cães com essas características é criar uma rotina consistente. Veja que consistência gera previsibilidade, logo elimina boa parte do estresse. Quando estabelecemos horários para alimentação, exercícios, treinos diários, momentos de descanso, com regras claras e disciplina, automaticamente eliminamos a sensação de hesitação e incerteza que vem com uma vida livre dessas determinações. É curioso porque muitas vezes acreditamos que dando mais liberdade e permissividade estamos oferecendo mais conforto, quando na realidade, todas essas opções abrem um precedente maior para incertezas.
Outro elemento primordial a ser considerado é o equilíbrio emocional na relação com esse cão. É quase que unânime, entre famílias que tem esses cães, vermos um posicionamento de pena em relação ao cão inseguro ou medroso. Existem sempre justificativas para não mudar nada no contexto e/ou não intervir quando o cão reage dessa forma. Essa é uma resposta totalmente emocional, já que assim tendemos a ver pessoas em situações similares. Muito dessa resposta tem um reflexo pessoal, por isso muitos dos cães que passam longos anos tomados pelo medo e insegurança, vivem com pessoas com características bem parecidas. Acaba sendo confortável viver diante desse espelho e mudar em relação ao cachorro significa mudar a perspectiva de vida, o que é muito difícil para muita gente.
O segredo aqui é usar o equilíbrio entre a razão e emoção. Saber que o cão é inseguro, identificando corretamente como ele reage, mas ter uma plano de ação para trabalhar nessa modificação. Isso requer, muitas vezes, não se emocionar quando o cachorro faz aquela carinha de perdido, ou não desistir de uma atividade específica quando o cachorro quer fugir dela. Claro que aqui vale o bom senso e cada situação requer uma análise individual. Vamos revisar alguns exemplos na prática e ver como essa postura, e o plano de ação podem ser definidos.
Essa semana eu atendi um caso bem interessante de uma cachorrinha chamada Batata. Ela foi adotada com apenas 20 dias e viveu seus primeiros anos de vida numa casa com 13 pessoas. A lógica diria que ela teve toda exposição necessária à pessoas diferentes no ambiente doméstico, certo? Não exatamente. Na realidade, apesar de existirem várias pessoas no contexto, ela nunca teve uma rotina bem definida. As interações eram diversas, de acordo com a pessoa, e essa insegurança, que antes poderia ser natural, hoje virou uma forte reatividade à pessoas. Vale ressaltar que ela sempre foi muito bem tratada por todos e nunca teve nenhuma experiência ruim com humanos. Mas então o que faltou? O que gerou essa reação tão extrema? A resposta está num conjunto de fatores.
A falta de uma rotina, com mais limitações, mais disciplina e mais previsibilidade deixou ela mergulhada num universo de possibilidades. Isso, para cães inseguros, é a receita para o desastre.
As exposições dela ao universo social, especialmente à outros cães, não foram feitas com um olhar mais observador, por isso acidentes aconteceram (ela mordeu outro cachorro numa disputa por um objeto) e a memória ou associação criada ficou como referência.
Toda essa hesitação e insegurança mantiveram a Batata num estado mental de constante alerta, aonde ela se antecipava sempre com uma reação negativa. A falta de orientação correta nessas horas, deixou as portas abertas para o comportamento se perpetuar.
Tudo isso dentro de um convívio aonde o emocional falou mais alto, e deixou a pessoa totalmente desarmada e sem norte para lidar com um problema que um dia foi menor, e hoje se tornou quase que insustentável.
É importante observar que as pessoas que vivem com esses cães não fazem isso de forma proposital. É simplesmente falta de orientação correta. Existem muito mais informações confusas do que claras e poucos profissionais estão aptos a lidar com o lado humano dessa situação. Existe também muito sensacionalismo espalhado em livros, vídeos e materiais que deveriam ser educativos, mas acabam sendo uma via de condenação para as pessoas que buscam ajuda de verdade.
No caso da Batata muita coisa já foi feita no sentido de mudanças de rotina, e é visível que ela já melhorou, porém, o que faltava era o elemento que faria as regras valerem, o que realmente daria a pessoa a real habilidade de intervenção e orientação. Esse elemento foi a coleira eletrônica. Esse equipamento, incorporado corretamente nos treinos diários, foi o divisor de águas nessa equação. Com a coleira foi possível deixar claro o que era esperado dela, desde os momentos de orientação simples, como respostas de comandos como place, deitar, ficar, voltar e andar junto, até intervenções nos momentos exatos de intenção de explosão.
Claro que todo o resultado sólido depende de consistência, como falamos anteriormente, mas ter nas mãos essa habilidade e a informação devida de como colocar tudo isso em prática, faz toda a diferença no rumo dessa relação ao longo da vida. A caixa de transporte, também foi inserida no contexto, previamente, e agora será usada também como parte dessa solução.
Um segundo caso interessante que encontrei foi com um cachorro chamado Valente. Esse era um SRD de 6 anos que tinha sido recentemente a adotado. Ele nasceu num abrigo para cães e viveu esses anos todos dentro de um grupo vasto de cães. O contato com pessoas era limitado aos funcionários do abrigo, e quando aconteciam eram apenas turbinados de muita emoção. Ele não tinha uma rotina rica em experiências, nunca tinha caminhado nas ruas ou sido exposto a coisas simples de uma casa ou apartamento. Já dá pra imaginar como era a postura dele diante de todo esse universo novo nessa nova família, que já tinha outro cão.
O cachorro já existente na família era menor mas muito mais confiante. Ele tinha uma rotina que incluía caminhadas diárias, mas sempre com muita agitação e sem qualquer controle. Ele avançava em outros cães no passeio e basicamente tinha muita liberdade de escolhas em casa. Para surpresa de muitos ele se deu bem com o Valente. Os dois conviviam bem sem problemas de interação, porém, já dava para observar que a rotina de casa oferecia ainda muitas opções que não seriam ideias para o futuro desse novo cão. A família começou essa relação pelo lado emocional, buscando afeto e engajamento físico como mecanismos de aproximação. Claro que não deu certo. Valente eventualmente retraiu ainda mais e chegou a morder uma das pessoas da casa em duas graves ocasiões.
A partir daí o desafio era ainda maior. Toda e qualquer aproximação, até mesmo das pessoas da casa, se tornaram um problema. Valente fugia de todos e levar ele para caminhar era uma luta diária. Durante o tempo que trabalhei com a família, fiz o melhor para esclarecer que essa postura não estava ajudando. Várias de nossas sessões eram dedicadas as coisas mais simples do mundo como apenas estar com ele no mesmo ambiente, sem engajamento. Colocar e tirar a guia também era um outro processo, até porque ele não usava focinheira e eu não queria me tornar mais um alvo de sua explosão. Não seria justo com nenhuma das partes. Muito desse processo estava baseado em recriar uma relação de confiança com ele. Sem isso nada poderia ser construído. Apesar de ver uma boa evolução em vários aspectos, nunca realmente chegamos aonde seria o ideal. Porque? Muita coisa da rotina não jogava à nosso favor. A família tinha pouco tempo, pouca paciência para lidar com essas etapas intermediárias e talvez pouca inclinação para assumir a postura necessária para materializar a real transformação. Infelizmente acontece e nem todos os casos tem o final mais gratificante, mas a decisão é da família que vive com esse cão. Eles são ótimas pessoas com a melhor das intenções, adoram o cachorro, mas talvez não estivessem tão aptos a assumir um caso como o dele. Ele vive com eles até hoje, e acredito que eles aceitaram a viver com algumas limitações.
Eu poderia descrever mais alguns outros casos interessantes de cães medrosos, talvez com menos intensidade nas reações, mas, acredito que a ideia aqui é mostrar que existem soluções. Cada caso vai trazer elementos únicos e todos devem ser avaliados, especialmente os humanos da equação. No final, é a nossa habilidade de apresentar novos desafios e trabalhar em cada etapa que faz a diferença. O resultado à longo prazo vai depender que quem conduz a situação.
Para todos que tem cães inseguros e medrosos, meu melhor conselho é, chame ajuda profissional. Mesmo diante dos primeiros sinais. Não espere o quadro se agravar, nem um acidente acontecer. Em muitos casos o que falta é simples, e algumas mudanças de rotina podem trazer progressos e excelentes resultados. Em outros casos o trabalho é mais intenso e exige mais de você, mas não significa que não pode ser feito. Tudo depende da sua disposição e vontade de alcançar os melhores resultados possíveis.
Se você esquecer de tudo que foi escrito aqui, volte e leia o primeiro parágrafo desse texto. Ele vai te lembrar de como a sensação de confiança nos faz sentir, e como o inverso disso pode ser devastador. Essa é a melhor motivação que você pode encontrar para ajudar seu cão, e quem sabe você mesmo, a superar essa situação. À partir daí busque ajuda, implemente mudanças, seja consciente e consistente nas suas práticas e equilibre suas emoções. O resultado pode ser uma porta aberta para uma nova vida, para você e seu cão juntos de verdade.