O estigma do cão resgatado e a eterna condenação inconsciente.
/Frequentemente eu recebo emails e mensagens de pessoas que adotaram cães recentemente e relatam, já no início do convívio, problemas de comportamento. Infelizmente muitas dessas pessoas escutam um discurso padrão que sempre justifica qualquer comportamento negativo como consequência do abandono.
Esse argumento, infelizmente, acaba sendo a condenação de muitos desses cães. Armadas com essa justificativa, muitas famílias passam a viver anos com esses cães, assistindo de camarote um comportamento ruim se tornar intolerável. É quase que dispensável dizer que esses cães pagam o preço.
Como alguém que já adotou cães que vieram de situação de negligência (Malu, Lucy e Kika), posso falar que todo esse discurso não passa de uma enorme manipulação emocional que tem como objetivo enfraquecer o ser humano e torna-lo cada vez mais passivo e sujeito à todas as vontades do cão. Mais uma vez é necessário fazermos uma análise objetiva desse quadro para entender o que exatamente está acontecendo.
Vamos aos fatos.
Muitos cães resgatados já passaram por outras famílias e foram abandonados por prévios problemas de comportamento.
Uma boa parte desses cães foi negligenciado, mas nem sempre no sentido que imaginamos (amor, carinho, comida e abrigo). Tem uma boa parcela que nunca recebeu orientação ou disciplina.
Se o cão já foi resgatado ele não é mais negligenciado.
A cura para negligência não é permissividade e liberdade, se fosse nenhum desses cães apresentaria problemas.
Sim, existem pessoas ruins e cruéis que fazem coisas terríveis com os cães, mas se você quer realmente dar uma nova chance para esse animal, fazer dele uma eterna vítima não vai ser construtivo.
Os erros mais comuns.
O problema do estigma dos cães resgatados infelizmente já começa nos anúncios. Os textos são um apelo à nosso lado emocional e pintam um quadro de lamentação que desencoraja qualquer pessoa à ter uma postura mais objetiva. As pessoas já entram no processo de seleção com o coração ditando todas as regras e esquecem o que vem de responsabilidade logo depois dessa decisão.
Muitos desses cães são excelentes e só precisam de alguém que encare essa nova relação com mais objetividade. Esses cachorros não devem ser vistos como vítimas, e nem como espelhos de pessoas que, por alguma razão, se sentem vítimas de qualquer outro aspecto social. Esse é um ponto importante, que se bem observado, diz muito sobre uma parcela de pessoas que opta pela adoção. A pessoa se sente discriminada, menos privilegiada, frágil e abandonada e decide adotar um cachorro nas mesmas condições. O par perfeito, certo? Não!!!
Entenda que esse cão, na nova vida, vai precisar das mesmas coisas que qualquer outro cachorro precisaria. Uma rotina bem equilibrada, as regras claras, um líder forte e justo e muita orientação, especialmente na fase de adaptação. Se o cão foi negligenciado, e está inseguro, a última coisa que ele precisa é de um humano mais frágil do que ele. Imagine se você estivesse perdido numa cidade e encontrasse alguém no meio do seu caminho tão perdido como você. Essa pessoa então te propõe que vocês passem a viver juntos, perdidos. Será que isso é a solução? Não só você continuaria perdido mas agora também prisioneiro de alguém que só te quer nessa condição. Faz sentido?
Trazer um desses cães para a sua vida, e imediatamente dar à ele o domínio da sua casa e seus recursos é uma receita para o desastre, especialmente quando já existe outro cão no contexto. Os problemas vão surgir quase que imediatamente por um motivo muito simples, falta de uma postura de liderança por parte dos humanos para estabelecer como essa nova vida vai funcionar. Não é justo com o cachorro e nunca vai funcionar.
A realidade e a solução.
A primeira coisa que deveria mudar é a forma como descrevemos esses cães. Se você adotou ou resgatou um cachorro, ótimo! Agora ele é seu cachorro, apenas isso, não um cachorro resgatado ou adotado. Voltemos ao mantra tão usado nos dias de hoje: os cães não vivem de passado, eles vivem o momento. Se você virar essa página, seu cachorro será eternamente grato. Como ele chegou até você e o que aconteceu com ele anteriormente não importa. O que vale é o que você vai proporcionar a partir de agora no sentido de construir uma vida melhor, com todos os elementos que esse cachorro precisa (orientação, regras, disciplina, saúde).
Se você está vivendo um momento de fragilidade, seja no lado pessoal ou profissional, lembre que esse cachorro não é a cura. O máximo que ele pode fazer é te motivar a sair desse momento já que agora ele é sua responsabilidade e depende de você para aprender como navegar no universo humano. O cachorro não é anti depressivo, ele não substitui pessoas e nem compensa nossas falhas ou derrotas em outras esferas de nossa vida. Muita gente cai nessa armadilha e acredita que a presença do cachorro vai compensar um casamento que não deu certo, a perda de uma pessoa querida ou a falta de amigos ou família. Isso não é real e pode ter consequências muito graves para você e para o cachorro.
O cachorro vem com uma enorme responsabilidade de compromisso no lado educativo e produtivo. É nosso papel educar esse cão para que ele possa ser incluso em nossa vida, não recluso em nossa condição de fragilidade. Esse cachorro vai cometer erros e vai precisar que você esteja ali para mostrar a diferença entre o certo e errado. Esse cachorro precisa sair e conhecer o mundo, do jeito certo, não ficar isolado apenas no seu universo pessoal. Esse cachorro precisa que você esteja forte, mentalmente falando, e disposto à fazer seu papel nessa jornada de reconstrução. Isso significa colocar a mão na massa e trabalhar com esse cachorro todos os dias. Isso significa trabalhar em você todos os dias, sem desculpas, sem justificativas e sem espelhar emoções.
Em resumo, se você adotou um cachorro, apresente ele para o seu mundo com a postura certa. Deixe a emoção de lado e comece o treinamento no dia 1. Aprenda e ensinar, aprenda a corrigir. Sim, eu falei corrigir! Você é o manual de instruções que esse animal vai ter para entender o que ele pode e não pode fazer. Disciplina é uma peça chave e sem ela você vai falhar. O cachorro não vai ficar triste, chateado ou deprimido, pelo contrário. Ele vai ser muito grato por receber essas informações claras, o quanto antes.
Mais do que nunca esse discurso de não usar punições está custando a vida de muitos cães. Soa muito bem aos ouvidos e projeta a ideia de que disciplina é crueldade. Eu posso listar aqui o que realmente é crueldade; deixar o cachorro fazer todos os passeios puxando na guia, deixar o cachorro avançar em outros cães e/ou pessoas, deixar o cachorro comer o rodapé da sua sala, deixar o cachorro atacar seu outro cão, deixar o cachorro comer uma planta venenosa no seu jardim, deixar o cachorro se tornar possessivo com você, deixar o cachorro ficar o dia todo agitado em casa e etc. Tudo isso sem nunca mostrar para o cachorro que existem outras opções e que nenhuma dessas atitudes são aceitáveis em seu convívio.
Desconsiderar tudo isso em nome do dito “amor incondicional” é não só um atitude egoísta, como também injusta, cruel e condenatória para esses animais. Vamos desconstruir a ilusão e fazer a nossa parte. O estigma não está na adoção ou resgate, ele está dentro de cada ser humano que usa esses cães como espelho de suas emoções. Isso pode e precisa acabar.