Como saber se seu cachorro é feliz com o treinamento? Desmistificando a projeção humana.

Diariamente eu recebo uma série de mensagens no meu canal do Youtube sobre uma variedade de questões relacionadas à cães, muitas delas envolvendo o uso de equipamentos de treinamento como e-collar e prong collar. Eu aprecio o diálogo aberto e quando as perguntas expressam uma genuína curiosidade eu faço questão de responder, até mesmo para que o público, de forma geral, fique mais bem instruído.

Há alguns dias atrás eu recebi a seguinte pergunta, que veio como comentário em um vídeo que fiz respondendo à outro questionamento sobre um cão que estava mais quieto depois do falecimento do outro cão da casa:


Bom dia. realmente é uma situação delicada... a ausência do parceiro que faleceu. Mas gostaria de perguntar se os cães que são "condicionados" com o uso da terapia de choque são realmente FELIZES? Afinal de contas o bichinho está sendo obrigado e forçado em ter um condicionamento para não receber o choque. Tudo bem que seja eficiente, mas será que o cão está feliz com esse tipo de adestramento, sendo que sua função canina está sendo doutrinada para o nosso próprio conforto e necessidades. Desculpe fazer o questionamento em um vídeo que não é sobre o assunto, mas se a coleira eletrônica é tão vesátil para supostos líderes da matilha... acredito que poderíamos utilizar o choque para evitar a depressão nos bichos?

Aqui vai a minha resposta;

A primeira coisa que precisamos definir é que não existe terapia de choque. O treinamento com a coleira eletrônica da e-collar technologies é apenas um modelo de treinamento, como qualquer outro que utiliza os quatro quadrantes de condicionamento operante. O termo “coleira de choque” não traduz a realidade desse equipamento dentro do treinamento já que não se trata de um choque elétrico como as pessoas imaginam. A tecnologia usada é a mesma aplicada em tratamentos de fisioterapia aonde existe um estimulador muscular em níveis diversos, ou seja, quando você testa a coleira você sente um estímulo nos músculos que é projetado naquela região.

Sobre a questão da felicidade, acho interessante definirmos esse conceito antes de qualquer coisa. Veja que estar feliz pode ter uma definição bem diferente de acordo com olhos de quem observa. Infelizmente muita gente tende a traduzir a felicidade nos cães de acordo com sua percepção ou projeção pessoal. Um bom exemplo disso está na nossa própria visão social de felicidade. Vamos ver aqui alguns exemplos, na esfera humana, que podem trazer um maior esclarecimento sobre o ponto que eu quero chegar.

Recentemente passamos por um dos maiores feriados do ano, o carnaval. Muita gente acredita que estar feliz nessa época do ano é sair para as ruas fantasiado, dançar em blocos sob o som de muita música alta, consumir álcool e chegar em casa de manhã cedo, acabado de tanto pular. Já outras pessoas tem absoluta repulsa por esse tipo de programa e preferem aproveitar esse feriado para descansar na praia, ou viajar para um lugar mais tranquilo, ou até mesmo ficar em casa curtindo um livro ou filmes na companhia de amigos ou familiares.

Veja que tudo depende da percepção e disposição que cada indivíduo tem sobre cada situação. O que parece ser padrão, muitas vezes, está longe de ser. Quando falamos sobre cães, infelizmente muito se projeta de nossos sentimentos, anseios e emoções em cima da realidade. Não é à toa que vemos constantemente cães apresentarem problemas de comportamento que estão diretamente ligados à sintomas de conduta pessoal dos indivíduos da família com a qual ele vive. Isso acontece porque é mais fácil para nós encontrarmos uma interpretação que faz sentido no nosso universo, versus tentar enxergar o cachorro como outra espécie.

Muita gente imagina que cachorro feliz é aquele cachorro bagunceiro, que está sempre agitado, sempre correndo de um lado para o outro, pulando nas pessoas com uma respiração ofegante e o corpo em movimento. Quem nunca ouviu o seguinte relato: “meu cachorro faz a maior festa quando eu chego em casa! Ele me adora!”. E esse aqui: “meu cachorro me adora, ele me segue até quando eu vou no banheiro.”. Eu poderia citar uma lista de relatos como esses e junto com eles a quantidade de cães que já atendi por conta de problemas mais graves que começaram com esses exatos comportamentos. Tudo parece muito bonito até um acidente acontecer.

Em meio a pergunta feita existe a seguinte colocação: “Afinal de contas o bichinho está sendo obrigado e forçado em ter um condicionamento para não receber o choque.” Se olharmos a forma como o texto é escrito podemos ver que já existe nas palavras um tom sugestivo de fragilidade. Quando nos referimos à cães como “bichinhos” estamos automaticamente projetando neles uma premissa de fragilidade (todas as palavras que terminam em “inho” sugerem uma referência ao diminutivo, ou seja coisas menores). Veja que esse termo em si é usado com muita freqüência em diversas situações, mas no caso aqui ele já vem como definição de um animal frágil, indefeso, inferior e inocente. A realidade é que cães são predadores por natureza de definição, e são muito mais fortes e resistentes do que podemos imaginar. Vejam nesse texto o que eles são capazes de fazer, sem a devida orientação.

Sobre ser obrigado e forçado a ter uma resposta específica de comportamento, eu acredito entramos numa esfera de utopia que tomou conta, não só do mercado de treinamento de cães, mas de tudo que se refere ao conceito de regras e punição de forma geral. O problema que existe nesse conceito vai muito além da coleira eletrônica em si, e está fundamentado na questão básica de regras e consequências. Infelizmente as pessoas estão sendo convencidas de que é possível viver num mundo aonde não existem regras ou consequências, ou seja, todos podem fazer o que querem e não há erros, apenas acertos mal interpretados. Isso é um problema grave, humano, que se propagou como uma febre no universo de treinamento para cães. No ano passado eu escrevi um artigo tocando exatamente nesse assunto, que vocês encontram aqui.

Nesse texto eu não vou entrar novamente na esfera humana então vamos direto às questões que dizem respeito aos cães. Os cachorros que são devidamente treinados com a coleira eletrônica aprender a fazer escolhas com base em recompensa e punição, ou seja, eles são guiados ao longo do treinamento em etapas diferentes aonde esses elementos são apresentados. Quando eles fazem as escolhas certas, eles recebem recompensas que podem variar de acordo com a preferência de cada indivíduo (comida, afeto, brinquedo, liberdade, ou simplesmente uma sensação de calma e tranquilidade) e quando eles fazem escolhas erradas eles recebem um estímulo, de acordo com a sensibilidade de cada indivíduo, dentro do processo de orientação. Além disso o uso da coleira eletrônica não está restrito a correções, até porque esses equipamentos tem 100 níveis de estímulos, além de funções como tom e vibração, que também são usadas como marcadores positivos em várias situações.

Vejam que o cachorro não é obrigado ou forçado à nada, ou seja, ele tem a opção de fazer escolhas, porém cada escolha traz uma consequência (como dizia minha avó, cada escolha é uma renúncia), podendo ela ser positiva ou negativa, de acordo com a situação. Remover as consequências significa eliminar qualquer possibilidade de influenciar (orientar) a resposta dada pelo cão, logo, eliminando totalmente a possibilidade de materializar a modificação comportamental real. Quando negamos esse conceito, seja para cães ou pessoas, nos colocamos num universo utópico aonde as expectativas de bons resultados simplesmente não são reais. Basta fazer um simples teste e ver o resultado: Seu cachorro avança em outros cães durante o passeio. Você opta por não corrigir. Qual é a solução nesse caso? Ignorar? Se afastar? Não sair mais? Oferecer petiscos? Nenhuma delas resolve o problema porque nenhuma consequência de valor foi associada ao comportamento em si. Eu poderia citar uma lista de exemplos similares mas acredito que a idéia ficou clara.

Na sequência da pergunta vemos a seguinte colocação: “Tudo bem que seja eficiente, mas será que o cão está feliz com esse tipo de adestramento, sendo que sua função canina está sendo doutrinada para o nosso próprio conforto e necessidades.”. Aqui está um excelente ponto para ser esclarecido já que tocamos na questão da eficiência e na influência humana sobre o tipo de resposta dada pelos cães. Primeiro, quando questionamos bons resultados precisamos avaliar qual é a real razão por trás disso. Será que não temos aqui aquele famoso momento de negação? Será que esse questionamento não vem de um lugar aonde existe um certo conforto (inconsciente) em ver o cachorro se manter naquela mesma situação problemática? Digo isso porque já tive a oportunidade, algumas vezes, de atender clientes que relutam bastante com cães problemáticos, mas se sentem péssimos quando o cachorro evolui, mostrando assim que existe um mecanismo que traz um certo conforto em saber que o cachorro apresenta problemas e você deve carregar esse fardo ao longo da vida. Parece loucura mas é mais comum do que gostaríamos de imaginar, e muita gente se coloca nessa posição, muitas vezes sem perceber. É o famoso estigma do Salvador, aonde o humano precisa que o cão tenha problemas para que ele seja o único mártir que pode carregar essa cruz, criando assim um propósito incorreto para a relação.

Quando o questionamento parte para a questão de doutrinarmos os cães para o nosso conforto e necessidades, chegamos exatamente aonde está a raiz da questão. Cães domésticos estão longe de ter a vida selvagem que teriam na natureza e quase que 100% do seu mundo é artificial ou não natural. O nosso papel como humanos, que optamos por trazer esses animais para o nosso convívio, é saber criar uma rotina que acomode as necessidades individuais de cada cão, ou seja, exercício físico, interação doméstica e social, aprendizado e convívio em família. Muito disso ficará longe de ser natural, mas se feito da forma correta, pode trazer uma enorme satisfação para o cão. O que acaba acontecendo, como citado na pergunta, é justamente esse dito ajuste para o conforto e necessidade pessoal, ou seja, é quando o cachorro vem como um elemento de compensação para o ser humano que luta internamente contra seus problemas pessoais. Alguns exemplos disso são vistos em casos aonde as pessoas relatam que seus cães estão deprimidos, com ciúmes, e tem atitudes negativas por vingança. Vejam que todos esses sentimentos são humanos e jamais pertenceram ao universo animal, mas ainda assim esses termos são usados diariamente para definir e justificar atitudes e comportamentos negativos desses cães.

Treinar um cachorro para que ele seja bem educado em situações diversas não é doutrina-lo para o nosso próprio conforto e necessidades, mas sim orienta-lo para que ele realmente possa fazer parte da sua vida de maneira saudável. É por eles que fazemos isso. Usar o cão para acomodar nosso conforto seria pedir que ele fosse o responsável por nossa felicidade quando estamos tristes, seria achar que ele está deprimido por assim estarmos, seria aceitar que ele ataca as visitas porque ele quer você só pra ele, seria deixar de caminhar com ele todos os dias porque você não está bem disposto e projeta nele essa mesma sensação, seria aceitar que ele faz xixi na sua cama porque você demorou de voltar pra casa e por ai vai. A diferença é bem clara e só quem realmente se dedica ao treinamento de seu cão sabe o quanto isso custa. Você abre mão de muitas coisas para colher os bons resultados. Você acorda mais cedo para caminhar com ele, você dedica algumas horas do seu dia, depois da sua jornada de trabalho, para praticar exercícios, você define seus programas sociais com base na sua rotina com seu cão, você viaja menos, você gasta mais, você cuida da saúde, da alimentação, da rotina, da higiene e da manutenção geral do animal. Logo, tudo isso é muito mais direcionado para as necessidades reais do cachorro e não necessariamente nossas. Isso é a real dedicação.

Por fim, a pergunta foi direcionada para uma possível aplicação de coleira eletrônica como solução para cães com depressão. Eu sou muito clara no meu posicionamento seguinte: não existe depressão em cães. Esse é um sintoma humano que é muito projetado nos animais, e em todas as situações que pude presenciar, existe uma clara e evidente projeção. Esses são cães que apresentam pouca disposição porque normalmente tem uma vida não bem estruturada aonde não existe uma rotina que inclua treinamentos, interação de valor, práticas de aprendizado, disciplina e exposição à cenários diversos. Esses são os cães que vivem com pessoas que tem problemas pessoais e não conseguem, por alguma razão, assumir o papel de liderança que é exigido para colocar em prática todas as mudanças necessárias para ver os resultados. A coleira eletrônica é apenas um equipamento de treinamento, e não faz mágicas. Ela precisa ser usada dentro de uma rotina de aprendizado e práticas diárias saudáveis para que o cão apresente um bom resultado contínuo.

Esse texto foi escrito pensando em todos que navegam nesse mar de incertezas. Minha intenção aqui é ajudar a esclarecer as dúvidas e desfazer esses mitos que são tão prejudiciais aos cães domésticos de hoje. Lembrem que treinamento (que envolve recompensa e correção) é um processo de aprendizado e requer disciplina, muito mais da nossa parte do que por parte dos cães. A dedicação à educação e adaptação dos cães em nossas vidas é a real prova de amor de você pode dar à esse animal que vive com você. Qualquer outra alternativa é apenas uma justificativa para negar a realidade. Não existem mágicas ou atalhos. É o trabalho diário que traz os resultados. Todo o resto é utopia que leva à condenação.